Quem somos nós

  • Redação
  • 30/12/2011 11:51
  • Jorge Vieira

Nem é original dizer que somos feras mal domesticadas: homens e mulheres das cavernas, como misero verniz que a qualquer contato mas, direto pode estalar, revelando dentes prontos para dilacerar carnes indefesas. O Velho, isto é, Sigmund Freud, pai e fundador da técnica da psicanálise, desvendou-nos, ao estudar essa estranha essência chamada alma humana, com suas paixões, sua morbidez e seus encontros, tudo brotando da sombra com flores de magia ou monstruosidade.
Nos sonhos, revelam-se algumas coisas. “Sonhos são espumas” – esse era um dos ditados ouvidos na minha infância. Naquele tempo, a voz sentenciosas previam chuva, vento, morte, nascimento, até os sexos das crianças que ainda iam nascer, com sabedoria feminina atávicas tantas vezes confirmada que eu acabava acreditando mais nela do que tudo que estava nos livros da biblioteca do tradicional Colégio Pio XII dos Padres do sagrado Coração de Jesus de Palmeira dos Índios.
Espumas subindo a superfície da nossa trevosa personalidade oculta ou a flor das águas do sono. Pensei nisso lendo sobre as atrocidades cometidas pelos soldados americanos contra prisioneiros no remoto Iraque. Não hão de ser piores do que as que se cometem em prisões pelo mundo a fora. Foram apenas mais noticiadas. Não hão de ser mais cruéis ainda, do que a secreta violência exercida contra crianças, adolescentes ou mulheres em muitos lares.
A violência familiar ocupa páginas de jornal, teses de psicologia, sites de internet. Minha alma se arrepia: quem somos no fundo, quem nos habita, que monstro é esse, muito mais antigo do que a mais antiga memória do nosso inconsciente?
Não sei, mais sei que ele mora em todos nós. Morava em mim quando, criança de 5 ou 6 anos, eu puxava uma pobre minhoca pelas duas pontas (qual a cabeça, qual o rabo?), até ela rebentar soltando uma gosma amarelada. Prendia um pedaço ainda vivo e tremulo no anzol de alfinete e pescava tranquilamente ao lado de meu pai no gigante lago fundo de nossa cidade, chamado de Açude Xucuru. Por cima de nossa cabeça o céu azul e calmo de cidade do interior. Ao nosso lado, o pomar com aroma de flores de laranjeiras. Mas, acima, o roseiral de Dona Ana, mãe do meu amigo Sebastião Berto e, mais adiante ainda a granja e a horta comunitária criada pelo Padre Ludgero Raaymakers. Voltava para minha casa na Rua do Meio, (hoje Marçal Oliveira), a casa com terraço de onde eu sonhava na rede, vendo as serras azuis que rodeavam a cidade. Ali moravam os seres de contos de fadas: o unicórnio, as princesas, os anões, a branca de neve, a baleia presa na sacristia da Igreja Nossa Senhora do amparo. Mas, também Joãozinho e Maria abandonados pelo pai e pela mãe porque havia pouca comida. E assim começava o terror.
Tudo muito esquisito.
Não é preciso ser um serial Killer. Pode ser o profissional que trai o amigo por ambicionar seu cargo; a mulher que calunia outra amiga por mero ressentimento; ou simplesmente alguém querendo ver o circo pegar fogo. Embora sejamos tantas vezes bons, magníficos, altruístas, generosos, capazes do belo, até do extraordinário, algo espreita em nós, pronto para o salto, a mordida, o gosto de sangue na boca e o brilho demente no olhar. Algo que quer o sofrimento da vítima aprecia seus gritos, tem prazer com sua humilhação: É o monstruoso que também somos. É que precisamos, a cada hora de cada dia, domesticar, controlar, sublimar.
O homem é um anjo montado num porco. Disse São Tomas de Aquino. O problema é que, de vez em quando, esse precário equilíbrio desanda, e ai salve-se quem puder.
Salvemo-nos. FELIZ 2012 COM MUITA SAÚDE E MUITA PAZ