Que acontecimentos históricos, levaram Joaquim José da Silva Xavier, um Alferes e dentista comum de Minas Gerais, a se tornar Tiradentes – Herói Nacional – um dos líderes e mártir do levante popular conhecido como "Inconfidência Mineira"? Joaquim é um filme sem precedentes. Mudou a maneira de retratar acontecimentos históricos no cinema.
O filme começa com uma narração em off, uma cabeça decepada e posta num tronco, a voz do Alferes Tiradentes – Joaquim – introduzindo os acontecimentos daquele que, assim como um boi piranha – que é sacrificado, uma referência a uma situação onde criadores de gado, ao atravessar um rio infestado de piranhas, abateriam um dos touros, já velho e/ou doente, atirando seu corpo, sangrando, ao rio, para atrair os peixes carnívoros enquanto os peões cruzavam o rio com o restante do rebanho. Uma metáfora fascinante, a uma parte da história brasileira. Na verdade, de uma história que traduz as lutas pela libertação do colonialismo português.
Influenciados pela Revolução Americana. Os motivos que levaram a tais processos, bem como as personagens complexas e suas vidas, ao desfecho da Inconfidência Mineira, são, por deveras, ainda pouco explorados, em vista da pouca documentação histórica. Os Autos da Devassa, todo o processo de julgamento, pena e condenação à morte, são conhecidos por historiadores e estudiosos desse período. Os embates doutrinários também. Porque vimos, na história e em suas revisões historiográficas, não um Tiradentes apenas, mas vários e com motivações/inclinações diversas. No entanto, pela primeira vez, agora, vemos um Alferes, um Joaquim, um mestiço – como ele se identificava – um filho de portugueses, com suas paixões, suas manias, desejos, despojos, sonhos e desilusões. Mas também, alguém que, acima de tudo, luta para sobreviver, para ser alguém/promovido/visto, naquilo em que todos nós buscamos, porque ele faz de um todo e de tudo, para ter o um lugar ao sol.
O filme “Joaquim”, com direção do Cineasta Marcelo Gomes - cineasta já consagrado com filmes como: Cinema, Aspirinas e Urubus, Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, O Homem das Multidões e Era uma Vez Eu, Verônica; usa uma câmera sempre em movimento – mostrando-nos um passado vivo e não estagnado –, ao recriar de maneira impecável, acontecimentos, diálogos, expressões, cenários, imagens e dilemas que nos leva a questionar e sentir, como seria possível e palpável, aquele mundo. Com uma direção de arte minimalista ao extremo, resgatando os espaços, trajes – observem que os personagens usam quase que uma única roupa – quase sempre rasgadas, sujas. Há objetos e figuras do cotidiano, ambientados no final do século XVIII, nas Minas Gerais da Colônia portuguesa, com uma verossimilhança realista, em que tudo e todos são explorados. Os detalhes com a sonografia são espetaculares, uma vez que o som ambiente, potencializado, para que percebamos o barulho, do mastigar, do andar pelo sertão mineiro, na vegetação do serrado, até num amarrar de cercas, nos remeta à época, transportando-nos àqueles eventos e fazendo-nos, quase que sentir os objetos, os odores e as dores dos acontecimentos.
As personagens são um deleite à parte. E são tantos os protagonistas, de Joaquim a seus companheiros, seus superiores e à sua “preta” – que aqui, rouba a cena toda vez que aparece, empoderando sua feminilidade de uma força, quase que sobre-humana – porque ela é um dos pontos de ignição para uma virada, uma guinada na história dos que estão ali envolvidos, porque ela se rebela desde os primeiros frames, pois ela sabe que, além de mulher – num mundo extremamente cruel e machista – ela sabe o que é ser uma mulher negra e escrava, naquele mundo. Ainda preciso mencionar personagens como a dupla índio e o escravo, que nos servem com várias metáforas. Adentrando no sertão proibido, eles sentem os perigos, o desdém, os medos e desafios, mas, diferentemente dos brancos, eles se veem como parte daquele mundo, eles se amalgamam à natureza insípida/seca e violenta do meio em que se inserem; pois eles, ao contrário de Joaquim e seus companheiros, não buscam mudar o inóspito espaço, apenas se adaptam, cantam e se alegram, num momento ímpar de pura música e poesia.
Nesta noite de pré-estreia, o Cineasta Marcelo Gomes, citando Humberto Mauro, assim falou: "O Cinema não deveria dar aulas de História e sim, converter História em prática”. E esta é a principal característica semântica de sua obra, porque conseguiu converter uma parte da história nacional numa prática social onde há denúncia, preconceitos, violência, genocídio de indígenas e escravidão. O domínio da Metrópole sobre a colônia. E em como um homem, vivendo no século XVIII, um funcionário da coroa, se torna em um rebelde, um inconfidente, que mudou todos os seus paradigmas. Assim, expondo e dialogando com o que antes estava ausente na historiografia oficial.
O longa acerta também em colocar um Joaquim que, com os contatos com intelectuais e pessoas envolvidas com ideias que iam na contramão dos interesses da coroa portuguesa, e daquelas que sofriam diretamente, as mazelas decorrentes das políticas colonialistas, em terras brasileiras, puderam moldar as concepções do alferes, transformando-o, para o bem ou para o mal, num mito. O filme trata da gênese do herói; não daquele ícone dos livros didáticos tradicionais, apenas, mas num personagem que poderia ser qualquer pessoa da época. Como um resultado das circunstâncias daquele momento específico. Tudo isso sem o glamour e as maquiagens dos filmes de época atuais. O realismo está presente e a fotografia nos revela que o sol do serrado e a luz causticante, a aridez, o suor do rosto, o cansaço nos homens e mulheres daquele momento, são iguais aos dos dias atuais. Já que, os problemas recentes, revelam-nos uma sociedade brasileira ainda elitista e extremamente desigual, mesmo passados mais de dois séculos de história.
Depois da projeção, aconteceu um bate-papo com o Diretor Marcelo Gomes que deu uma aula de cinema. Para ele, Joaquim, “é um filme que retrata a poética do cotidiano do século XVIII, mas uma poesia nua e crua. Revelando uma sociedade brasileira em que a elite no século XVIII, queria ser portuguesa. Já no século XIX, queria ser francesa. E no XX, americana. Só mudaram os países, mas o desejo é o mesmo, sempre ser alguém, desde que não seja brasileiro. Talvez, esse seja o grande mal que até hoje está presente no nosso país. É um país de grandes injustiças sociais, onde os privilégios estão nas mãos de poucos, que não querem dividir esses privilégios com a grande maioria.”
Histórica, estética e didaticamente palpável, intenso. Joaquim marca um início de uma nova maneira de se fazer cinema; com a preocupação de não entregar tudo pronto, enlatado, mastigado. Mas em deixar com que boa parte de sua projeção crie em nós a sensação de algo extremamente novo e belo, poético e organicamente deleitoso. O cinema brasileiro com o filme "Joaquim", amadureceu mais uma vez.
Depois, seguindo a programação do Corujão Arte/CESMAC, ainda tivemos a exibição de Blow-Up, clássico do cinema mundial, do diretor italiano Michelangelo Antonioni. No intervalo, a apresentação impecável do cantor Júnior Almeida. Ainda teve o filme Além da Ilusão, com a atriz Natalie Portman. Sorteios de brindes, dentre os quais o Livro "Maceyorkinos: ensaios de crítica cultural à Maceió-artística glocalizada", do Escritor Alagoano Ricardo Maia. E por fim, um agradável café da manhã. CORUJÃO ARTE/CESMAC voltou a introduzir em Alagoas, VIDA INTELIGENTE NAS MADRUGADAS. Assistam um trecho do bate-papo com o diretor Marcelo Gomes: https://www.youtube.com/watch?v=xZZ7-7dJ-HE