"Descendo pela toca do Coelho". É assim que começa o livro Alice no País das Maravilhas. Que neste ano completa 150 anos. Lewis Carroll escreveu a história de Alice, uma menina que passa por grandes transformações (primeiro, da infância à adolescência, numa terra de adultos). Este clássico mudou e continua a mudar nossa maneira de enxergar o mundo, a nossa realidade, esta que, não são raras as vezes que também são tão tumultuosas quanto aquele País das Maravilhas.

Para baixo, para baixo, para baixo. Não havia mais nada para fazer (...). A certa altura, depois de adentrar na Toca do Coelho, Alice se depara com uma situação que lhe escapa às mãos. E, por mais que ela tente fazer algo que possa mudar, ela não consegue. Então, ela percebe que a única maneira de resolver esse desafio é se adequar, se moldar ou aceitá-lo. Não significa que irá gostar do que virá, dali por diante, mas que, entendendo aquele mundo, ela teria mais chances de, pelo menos, intervir, mudar alguma coisa. Mesmo que ela não tivesse respostas para todas as perguntas: “[...] E aqui Alice (...) continuou dizendo consigo mesma, numa espécie de devaneio: “Gatos comem morcegos? Gatos comem morcegos?” e, às vezes: “Morcegos comem gatos?”. Pois, como ela não conseguia responder à pergunta, não importava muito a ordem em que era colocada [...]”. O grande barato aqui é que Alice não para de perguntar, mesmo sonolenta, ela quer saber das coisas, mesmo as que lhe rodeia.

Com o passar do tempo, no País das Maravilhas, as coisas começaram a ficar mais compreensíveis. E Alice começa a perceber que estava na hora de entrar – literalmente – naquele mundo. Só assim, aquele mundo passaria a ser sentido – pelo paladar – e a ter gosto: “No entanto, naquela garrafa não estava marcado “veneno”, e assim Alice aventurou-se a dar um gole; como achou muito gostoso (tinha, de fato, um sabor misto de torta de cereja, pudim de leite, abacaxi, peru assado, caramelo puxa-puxa e torradas quentes com manteiga), em pouco tempo já tinha bebido tudo.” Vê-se aqui, o quanto é bom passar por todas as transformações e saboreá-las, uma a uma. Penso que Alice foi uma criança e viveu sua infância, em todos os sentidos. E amadurecer, talvez fosse seu grande desafio.

Depois de ter aumentado, alargado, estreitado e diminuído de tamanho, Alice começa a ter dificuldades reconhecer a si mesma: "Por fim, a Lagarta tirou o cachimbo da boca e dirigiu-se a Alice com voz lânguida e sonolenta: “Quem é você?” (...). Alice respondeu muito tímida: “Eu... já nem sei, minha senhora, nesse momento... Bem, eu sei quem eu era quando acordei esta manhã, mas acho que mudei tantas vezes desde então...” “O que você quer dizer com isto?” perguntou a Lagarta com rispidez. “Explique-se melhor!” Esta última frase é maravilhosa. Porque somos levados – e nos dias atuais com as redes sociais então – a darmos explicações de quem somos, a todo o momento. Vivemos num mundo em que temos que nos explicar tudo e a todos.

Contudo, ainda restava a Alice, um desafio dos mais intrigantes. Enquanto andava pela floresta, ela se deparou com uma bifurcação, ao ver o Gato de Cheshire, ela pergunta: “[...] Você poderia me dizer, por favor, qual o caminho para sair daqui?” “Depende muito de onde você quer chegar”, disse o Gato. “Não me importa muito onde...” foi dizendo Alice. “Nesse caso não faz diferença por qual caminho você vá”, disse o Gato. “...desde que eu chegue a algum lugar”, acrescentou Alice, explicando. “Oh, esteja certa de que isso ocorrerá”, falou o Gato, “desde que você caminhe o bastante.” Alice percebeu que era impossível negar isso; então arriscou outra pergunta: “Que tipo de gente vive por aqui?” Todos nós sabemos que “qualquer caminho vai dar em qualquer lugar”. E, se não sabemos aonde queremos chegar, tanto faz os caminhos que iremos trilhar. Mas Alice não se contentando, ainda consegue fazer uma última pergunta. “Que tipo de gente vive por aqui?” Disse ela. E é esta última pergunta que vai definir o futuro de Alice, uma vez que são as pessoas que nos rodeiam – as que mais nos influenciam – que determinará em que tipo de pessoa Alice se tornará.

A um certo momento, Alice, tomando chá, na casa do Chapeleiro Maluco, se depara que outros questionamentos que a deixa intrigada, mas não menos determinada. Contudo, adentrar numa nova etapa da vida é se deparar com novas ideias, conceitos e compreensões não tão fáceis, sobre a vida e sobre tudo: “Tome um pouco mais de chá”, disse a Lebre de Março para Alice, com a maior seriedade. “Mas eu ainda não tomei nenhum”, replicou Alice, ofendida, “como posso tomar mais?” “Você quer dizer que não pode tomar menos”, disse o Chapeleiro. “É bem mais fácil tomar mais do que nada.” Alice no País das Maravilhas, não é um livro para crianças, por incrível que pareça. As crianças podem até se divertirem lendo as aventuras de Alice. Mas há, neste livro, uma carga e crítica sociais fantásticas. Lewis Carroll faz uma análise de seu tempo e é nas minúcias, nos detalhes, que podemos entender o que ele quis dizer. Por mais que Alice se justifique em dizer que não pode tomar mais, por não ter tomado nenhuma xícara de chá. A resposta do Chapeleiro Maluco leva-nos a crer que “naquele mundo, a lógica não fazia mais tanto sentido”. Vocês conseguem ver alguma semelhança, com os nossos dias atuais?

Quando Alice encontra a rainha de copas, ela faz o seguinte comentário: “A Rainha só conhecia um jeito de solucionar todas as dificuldades, fossem elas grandes ou pequenas. “Cortem a cabeça dele!” clamou, sem sequer olhar ao redor.” Em momentos de “crise” – seja ela nacional ou não – a ideia de cortar parece uma constante, na vida de nossos governantes. Pois, na ditadura militar, este “cortem a cabeça” era no sentido literal. Em nossos dias, como vivemos numa Democracia de Estado de Direito, não cabe mais sair cortando as cabeças, mas, sempre se encontra um jeito para cortar alguma coisa – Educação, Saúde, Segurança – e que, infelizmente, quem sempre paga essa conta, somos nós, o povo.

Uma das últimas lições de Alice, se dá quando do reencontro dela com a Duquesa. Quando ela diz quem Alice deve ser: “[...] ‘Nunca imagine que você não é senão o que poderia parecer aos outros que o que você foi ou poderia ter sido não era senão o que você tinha sido que lhes teria parecido diferente.” Ou seja, ‘Seja aquilo que você parece ser’. Ser o que parecemos ser é, talvez, o maior dos desafios atuais. Pois vivemos na “Era do Strip-tease Social”, termo usado pelo Sociólogo polonês Zygmunt Bauman e que explicita as dificuldades das pessoas em ser elas mesmas, mesmo se expondo demasiadamente. Recentemente, um documentário e uma série americanas (ambos chamados “Catfish”) exemplificam muito bem, essa necessidade que muitas pessoas têm hoje em dia, de se esconderem por detrás de uma tela, aparentando ser o que não são.

Por fim, Alice consegue sair/acordar do País das Maravilhas e voltar ao mundo real. A transformação a que passamos, quando da passagem da infância para a adolescência e depois para a vida adulta, quase não são perceptíveis, aos nossos olhos, mas as mudanças são enormes. Alguns de nós, infelizmente, só tardiamente, percebem tais mudanças. Outros, logo cedo se veem nessa transformação. Mas a maioria passa pela vida como se tudo fosse um sonho e não conseguem tirar o que de melhor há nessa Aventura, que é Viver.

Resta-nos saber, assim como Alice no País das Maravilhas, se conservaremos todas as lembranças de nossa própria infância e dos dias felizes: “Por fim, ela imaginou como seria sua irmãzinha quando, no futuro, se transformasse em uma mulher adulta; e como conservaria, com o avançar dos anos, o coração simples e afetuoso da infância; e como reuniria em torno de si outras crianças e deixaria os olhos delas brilhantes e atentos a muitas histórias estranhas, talvez mesmo com o sonho do País das Maravilhas de tantos anos atrás; e como compartilharia as suas pequenas tristezas e as suas simples alegrias, recordando-se de sua própria infância e de seus felizes dias de verão.”